Moradia

Nos objetos, a vontade de um lar

Projeto Morada sob as Estrelas, do Programa de Pós-Graduação em Memória e Patrimônio da UFPel, resgata a história de moradores de rua e seus pertences

No rosto as marcas e a desconfiança oriundas das batalhas perdidas para a vida. No teto, apenas o céu. Ao invés do parquê, o frio das calçadas, e no horizonte a esperança de voltar a ser feliz. Para quem mora na rua, a realidade pode ser perversa e seria muito pior sem a presença de objetos afetivos, com significados únicos para cada um. Uma sapatilha, um livro, um caderno de poemas. Contar a história dessas pessoas é o objetivo do projeto Morada sob as Estrelas: Carregar só o que Vale a Pena.

O projeto foi idealizado pela doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória e Patrimônio da UFPel (PPGMP), Daniele Borges, sob coordenação da professora Cláudia Turra Magni, que anteriormente havia desenvolvido pesquisa colaborativa com pessoas sem domicílio fixo, resultando na proposta do conceito “nomadismo urbano”. A iniciativa é também vinculada ao Museu das Coisas Banais, um acervo digital composto de fotografias e narrativas escritas relativas a objetos cuja beleza está na subjetividade para cada pessoa.

Com o tempo o MCB passou a pretender a expansão de sua abordagem de coleta e compartilhamento ao trabalhar com pessoas em situação de rua, unindo-se assim à proposta do Morada sob as Estrelas através do registro fotográfico e oral com essa população, seus lugares e objetos afetivos, memoriais e biográficos, trazendo à tona outras perspectivas sociais que envolvem o material: consumo, acúmulo, preservação, utilidade, memória, afetividade. “Normalmente a cidade passa por essas pessoas e não se aproxima, às vezes faz cara feia. Buscamos conhecê-las, entender suas situações e tentar envolvê-las nessas atividades”, comenta Daniele.

Através de saídas de campo que ocorrem semanalmente em praças da cidade e no Pop Center os pesquisadores observam os grupos primeiramente em um “pré-encontro”. Esse é o momento em que expectativas e frustrações andam lado a lado. Aos poucos as pessoas sentem-se mais à vontade e contam suas histórias, mostram seus objetos.

Heterogêneo
Ao falar do projeto, o grupo de pesquisa composto por alunos de cursos como Antropologia, Geografia e Memória Social tem muito cuidado para não cair em generalizações. “Cada caso é um caso. É sempre tudo muito delicado e cada história é única”, afirma a estudante Estefani Leitzke. Daniele segue o pensamento citando dois exemplos: um senhor cuja perda do filho trouxe a desilusão em relação à vida e outro que perdeu a esposa em uma viagem e a bebida se tornou a solução para escapar da realidade. São trajetórias distintas, mas com o mesmo destino: a rua.

Além de muito heterogêneo, é um campo também muito dinâmico, relata Estefani. “Num dia há um grupo fixo que nos recebe, mas no seguinte já pode não haver mais ninguém, uma hora são todos amigos, na outra são todos inimigos.” É dessa forma também a recepção dos moradores em situação de rua. Se em determinado momento gostam da presença do projeto - é uma companhia para pessoas que por muitas vezes são invisíveis à sociedade -, em outros impera a desconfiança, totalmente plausível em alguém cuja vida insistiu em bater. “Gostam da nossa abordagem, mas de repente perguntam o objetivo do projeto. Dizem querer mesmo uma casa, um trabalho”, conta Daniele.

Afetividade
Para o grupo, porém, o objetivo é menos prático e mais passional: a experiência possibilita aprofundar a compreensão sobre a relação de afetividade que as pessoas em situação de rua têm com seus respectivos objetos e, a partir daí, buscar a quebra de estereótipos, como a rasa conclusão de que pessoas sem teto estão nessa situação porque querem, têm preguiça de trabalhar, preferem pedir, roubar.

Existe, por exemplo, a figura de Mário Sérgio da Silva Pacheti, que já há sete anos coloca um balde em frente a estacionamento no prolongamento da avenida Bento Gonçalves e trabalha como manobrista. Fica lá das 10h às 15h, em ponto. Mesmo assim, quando pede moedas recebe em troca a frase no modo imperativo: “Vai trabalhar”. Não sabe muito bem datas exatas, tem noção apenas de que há alguns anos se separou da esposa, “fez bobagens” e acabou preso. Saiu de lá, não quis mais voltar e foi para a casa da mãe.

Para tal se apoiou na literatura. “Já tive meus dias perdidos. Depois que comecei a ler as coisas mudaram. O livro me traz paz, não me faz pensar em bobagem, me ajuda a enxergar pra frente, não pra trás”, comenta. Seu preferido é Um lugar ao sol, de Érico Verissimo, presente de uma mulher.

Poesia
Os objetos que Diogo Braga, 35, carrega são uma caneta e os vários cadernos que acumula recheados das poemas escritos diariamente. Dependente químico há 15 anos, ele atualmente está limpo por conta da tranquilidade que a literatura traz. “Me sinto em paz quando estou escrevendo. Me ajuda porque é um orgulho que eu tenho. Sinto vontade de escrever e de repente já estou com a caneta no meio dos dedos”.

Há sete anos, quando o pai morreu, Diogo se desentendeu com a mãe, voltou a usar drogas e passou a frequentar as ruas, dormindo em casa de acolhimento. Hoje, seu dia a dia é baseado em acordar cedo, trabalhar como chapista e no tempo livre escrever poemas sobre o Rio Grande do Sul, amor, solidão. “Morar na rua é ruim porque a gente é muito injustiçado. É como um livro: não se pode julgar pela capa, mas pelo interior”, comenta.

Para ele, que gosta de carros antigos e da música de Bezerra da Silva e Noite Ilustrada, os sonhos para o futuro são dois: ver a família unida e ser feliz novamente.

Nice
Há também uma mulher de fibra no Morada sob as Estrelas conhece: Nice Duarte Nunes Machado, 40 anos. Analfabeta, mora há dois meses no parque Dom Antônio Zattera e há cinco anos na rua, desde que os pais morreram. É mãe de quatro filhos que moram com a irmã e ela visita todos os dias. “Morar na rua é ruim. As pessoas olham com desconfiança. Gostaria de ter a minha casa”, comenta.

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